O ônibus tombou enquanto o motorista fugia de uma abordagem da ANTT, que constatou irregularidades no veículo - (crédito: CBMDF)
Duas das cinco pessoas mortas na tragédia do último sábado foram enterradas ontem, no DF. Pai e filho responsáveis pelo veículo continuam presos. Segundo a ANTT, quantidade de veículos recolhidos mais que dobrou em 2023
Embarcar em um ônibus de viagem de empresas que prestam serviço clandestino é sinônimo de perigo para usuários e funcionários. Dados da Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) apontam que, de janeiro a 21 de outubro deste ano, no Distrito Federal, 202 veículos foram apreendidos por não estarem em conformidade com as normas do transporte de passageiros interestadual — mais do que o dobro (129%) na comparação com o mesmo período do ano passado, quando 88 ocorrências foram registradas. A quantidade é maior até mesmo quando comparada a todo o ano passado (112 apreensões).
Foi por causa desse desrespeito criminoso que ocorreu mais uma tragédia, no último sábado, em que cinco pessoas perderam a vida depois de um ônibus desgovernado tombar na BR-070. A tristeza e a revolta estavam nos rostos de parentes e amigos, ontem, durante o enterro dos corpos de Francisco Ferreira da Silva, 71 anos, e de Maria de Deus Fernandes Crateus, 64.
No cemitério de Taguatinga, familiares de Francisco prestaram as últimas homenagens. Genro do idoso, Rodrigo Carvalho de Jesus, 36, lembrou que ele era muito próximo da família e sempre estava presente. "Foi a negligência do motorista que causou tudo, essa é a verdade. Se ele tivesse deixado a polícia conduzir da forma correta, nada disso teria acontecido e todos estariam bem", lamentou. "Eles fizeram isso por causa de uma mixaria que, no final, se tornou um prejuízo enorme. Precisam pagar pelo que fizeram, a família está revoltada, porque poderia ter sido evitado", desabafou Rodrigo Carvalho. Francisco deixou oito filhos.
Deusinha, como era carinhosamente chamada Maria de Deus, foi sepultada no Cemitério Campo da Esperança. Ela tinha quatro filhos e era apaixonada por Brasília, cidade onde desejava comprar um apartamento e viver com a família. Ela morava em Coelho Neto (MA). Para os familiares, restam sentimentos de choque e de revolta. "Não podemos tratar como uma fatalidade, mas sim como um crime, do qual exigimos justiça", destacou Bárbara Crateus, 30, sobrinha da aposentada. "Quando soube, corri para o local do capotamento. Reconheci minha sogra pelos brincos que ela sempre usava e fiquei transtornado", lamentou o genro Lourival Martins, 53, que aguardava pela sogra na rodoviária e foi o último a se comunicar com ela.
Prisão mantida
Segundo a Polícia Civil (PCDF), o capotamento que matou Francisco, Maria e outras três pessoas, ocorreu após o ônibus da Íris Tur ser parado em um posto da Polícia Rodoviária Federal (PRF), na rodovia onde agentes da Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) constataram irregularidades e iniciaram uma escolta do veículo até o terminal rodoviário de Taguatinga, para apreensão do ônibus. A empresa ficaria, ainda, responsável por arcar com os custos do restante da viagem dos que embarcaram no transporte clandestino, para que pudessem seguir por outra linha, em situação regular.
Em uma tentativa de fuga, o motorista arrancou em alta velocidade, perdeu o controle do veículo ao bater uma uma caminhonete, o que acarretou no capotamento. A ANTT informou que o ônibus não tinha autorização para realizar o transporte interestadual de passageiros, estava sem seguro e com os pneus carecas. Felipe Alexandre Gonçalves, 32, e seu pai, Alexandre Henriques Camelo, 56, foram presos em flagrante e autuados por homicídio qualificado. Durante audiência de custódia, na tarde de ontem, o Tribunal de Justiça do Distrito Federal (TJDFT) decidiu converter em preventiva a prisão de Felipe e Alexandre.
Em depoimento à PCDF, Felipe afirmou que quem estava dirigindo o veículo no momento do tombamento era o pai. Alexandre, por sua vez, garantiu que não estava fugindo da fiscalização, pois o ônibus estava cheio e os fiscais em posse dos documentos dos passageiros. Segundo a versão dele, o ônibus derrapou devido a uma caminhonete que freou na frente do veículo, fazendo-o perder o controle. O teste de bafômetro foi feito no local e comprovou a não ingestão de bebida alcoólica por parte de ambos.
Surpresa triste
A tragédia na BR-070 assustou o motorista de ônibus coletivo Josiel de Araújo Cabral, 51, que afirma viajar em veículos da empresa Íris Tur com o primo, irmão e neta, desde 2005, para visitar a família, em Caxias, no Maranhão, mas nunca percebeu irregularidades. Segundo ele, a diferença de preço para as outras empresas é exorbitante, de aproximadamente R$ 150. "Sabia dos riscos, mas viajava. Cuidado, temos que ter sempre, mas depois do que aconteceu, tenho que ficar mais vigilante", confessa. Daqui para frente, ele diz que vai evitar usar a empresa e ir de carro ou de avião.
Perigos como esse sempre deixaram a aposentada Maria Izabel Peixoto, 76, em alerta quando precisa viajar de ônibus para visitar familiares, em Pirenópolis (GO). Ela garante que, durante os mais de 40 anos que mora em Brasília, sempre evitou usar transporte clandestino, por medo de acidentes. "Fico três horas esperando para pegar um ônibus de qualidade, se for preciso", assegura. "Na rodoviária, saem perguntando 'vai para qual lugar?'. Conheço muitos casos e, por isso, evito esse transporte", completa Maria Izabel.
Dois dias após o ocorrido na BR-070, o Correio percorreu os três principais locais onde esses veículos costumam desembarcar e embarcar passageiros: a Rodoviária de Taguatinga, atrás do Cemitério de Taguatinga e em um ponto de ônibus na QNL, na mesma região. Nessas áreas, os trabalhadores do setor afirmam que é comum ver os ônibus clandestinos, mas os veículos não deram "as caras" após a tragédia.
A reportagem apurou que os veículos de viagem interestadual com serviço clandestino costumam embarcar no início da manhã e no fim da tarde. "É fácil identificar um ônibus clandestino pelos pneus carecas, sujeira e por estarem mal pintados. Também é perceptível a desorganização dos funcionários, que colocam fogão, cama e até geladeira no bagageiro para lucrarem com taxas de bagagem", afirma um rodoviário, que não quis se identificar.
Fiscalização
Doutora em transportes pela Universidade de Brasília (UnB), Adriana Modesto destaca que a utilização de transporte clandestino deixa passageiros vulneráveis. "Na condição da clandestinidade, elementos como habilidades e competências necessárias ao transporte de passageiros, condições de uso e respectiva manutenção do veículo, são potencialmente negligenciados, sugerindo contribuição para o aumento dos riscos da ocorrência de sinistros de trânsito", avalia.
Além da fiscalização, Adriana Modesto afirma que é necessário identificar e incorporar mecanismos que possam tornar o modo regular mais atrativo, sobretudo aos segmentos sociais com poucos recursos que, por consequência, são mais sensíveis às tarifas mais baratas. "É um dos principais elementos que tornam o transporte clandestino mais atrativo", lamenta.
O superintendente de Fiscalização de Serviços de Transportes Rodoviário de Cargas e Passageiros da ANTT, Felipe Ricardo Freitas, explica que clandestino é o serviço e não o veículo. Com base na Lei de Criação da ANTT, há dois serviços básicos: o regular e o não regular. O primeiro tem o semiurbano, nas vias do DF, e as linhas de longa distância com bilhete de passagem, obrigadas a apresentar a infraestrutura, equipe de motoristas extensa, frota equivalente aos horários solicitados, com cadastramento dos pontos de venda, de apoio, parada e acessibilidade. O segundo é o de fretamento em circuito fechado, com três modalidades: eventual, contínuo e turístico. "As empresas de fretamento se aproveitam de um cadastramento mais simples para tentar operar, sem atender aos requisitos das linhas. É uma concorrência desleal", comenta Felipe Freitas.
Risco na estrada
24 de dezembro de 2021 — Um ônibus da empresa Real Expresso caiu em uma ribanceira, na véspera de Natal, após colidir com uma patrulha de inspeção da Concessionária Triunfo Concebra — que administra a via — e com um caminhão na BR-153, em Aparecida de Goiânia, na região metropolitana da capital de Goiás. Duas das seis vítimas do acidente moravam no Distrito Federal (Fabiana Tonussi Quirino Xavier, 44 anos, e José Joaquim Macedo dos Santos, 74).
12 de janeiro de 2022 — A colisão entre um ônibus de viagem e um carro de passeio matou seis pessoas na BR-020, próximo ao distrito de Bezerra, no município de Formosa (GO). Na via de mão dupla, havia cacos de vidro, pedaços de pneu e outros materiais plásticos dos dois veículos. Os cinco ocupantes de um Chevrolet Spin, vindos de Sítio do Mato, na Bahia, com destino ao DF, morreram. A sexta vítima foi o auxiliar de motorista, Jonatas Rocha da Silva, 23, que estava no ônibus da Transbrasil e seguia de Brasília para Teresina. Segundo depoimentos, Jonatas foi arremessado no momento da colisão.
2 de setembro de 2023 — Um acidente entre um ônibus da Viação Guanabara e um caminhão, no km 44 da BR-020, altura de Formosa (GO), deixou dois mortos e 23 feridos. Segundo o condutor do ônibus, que seguia no sentido Brasília-Bahia, a carreta, que transportava uma carga de sabão em pó, tentou uma ultrapassagem, mas não retornou à sua faixa, obrigando o motorista do outro veículo a desviar na contramão. O resultado foi a colisão frontal entre o ônibus, que estava com 46 passageiros a bordo, incluindo o motorista, e o caminhão.
Números da tragédia
32 passageiros
5 mortes confirmadas
17 feridos
3 em estado grave
Fonte: https://www.correiobraziliense.com.br/
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