Mas ainda há muito a fazer
Criada a partir do clamor popular diante dos acidentes de trânsito na década de 1990, a lei da faixa de pedestre tem ajudado a salvar vidas e se tornou motivo de orgulho para o brasiliense. Mas ainda há muito a fazer. Em quase duas décadas, 90 pessoas morreram na travessia. ...
A lembrança de Geovanna, a filha perdida na faixa, está tatuada no peito de Butitiere, que segura nos braços Caetano, o
bebê que lhe trouxe esperança
Brasília nasceu monumental. Na imensidão do cerrado, a capital ganhou traçado moderno e amplas avenidas. Abrigou os carros como nenhuma outra cidade brasileira. Na época, houve até quem duvidasse haver um dia veículos suficientes para preencher a quantidade de pistas do Eixão e as seis faixas do Eixo Monumental. Mas levou apenas três décadas para que a convivência no trânsito ficasse completamente saturada. Em 1995, havia por aqui 436 mil veículos. E, naquele ano, 825 pessoas morreram em acidentes — quase metade delas pedestres. Era difícil encontrar alguém que não tivesse perdido um familiar ou um amigo vítima de acidente de trânsito.
Neste 1º de abril, a lei da faixa de pedestres — uma das medidas mais importantes no esforço para reverter as estatísticas avassaladoras e conquistar a civilidade no trânsito de Brasília — atinge a maioridade como um dos símbolos mais fortes de orgulho brasiliense. Apesar de reconhecida nacionalmente, a iniciativa que salva vidas é confrontada pelo descaso do poder público e pelo insistente desrespeito de uma parcela da população. A partir de hoje, o Correio Braziliense publica a série de reportagens Maioridade da faixa de pedestre, que traça uma radiografia desse imprescindível instrumento de segurança no trânsito.
A maior parte das faixas, porém, está apagada porque há mais de oito meses o Departamento de Trânsito (Detran) não renova a sinalização. O envolvimento das escolas públicas e privadas, que no passado foi parte essencial na conscientização da sociedade, resume-se a ações isoladas e esporádicas. As campanhas educativas de massa — de respeito à faixa e à legislação de trânsito em geral — simplesmente foram esquecidas e ocorrem somente em datas festivas.
Quase duas décadas após a promulgação da lei, a maioria dos motoristas respeita a faixa. Também é grande o número de pedestres que não abre mão do direito de atravessar a via em segurança. Mas há abusos de parte a parte. E ignorar a faixa está longe de ser uma “mera” infração. É um ato que tira vidas. Nos últimos 18 anos, 90 pedestres morreram no DF enquanto atravessavam sobre as listras brancas. No pior momento, em 2009, foram 11 vítimas. Números incapazes de expressar a dor de quem perdeu alguém de forma tão absurda e brutal.
Butitiere Fernanda de Assis, 32 anos, ainda chora a morte da filha Geovanna Vitória, atropelada ao atravessar a faixa de pedestres em Planaltina, em 2008. A criança, na época com 5 anos, e a babá foram atingidas pelo veículo conduzido pelo professor David Silva Rocha. Além de desrespeitar o equipamento de segurança, o motorista estava alcoolizado. A lembrança da filha foi eternizada por Butitiere. Ela tatuou o rosto de Geovanna no lado esquerdo do peito.
Este ano, a criança faria 12 anos. Entre lágrimas, Butitiere lamenta que o desrespeito ao próximo seja tão frequente. “As pessoas não respeitam a faixa, assim como ignoram a lei seca. Elas não pensam no próximo nem na imensa dor que podem provocar. Nossa família foi arrasada. Nunca mais fomos os mesmos.” Apesar da imensa dor, Butitiere tenta reconstruir a vida. Ela se casou e, este ano, deu à luz Caetano. Entre seus inúmeros “pavores” está o de não ver o filho crescer.
Redução no número de mortes
A redução das vítimas de trânsito no Distrito Federal é inegável. Apesar de todos os problemas, o DF fechou 2014 com o índice de 2,6 mortos por 10 mil veículos — média menor que a preconizada pela Organização das Nações Unidas (ONU), de três vítimas por 10 mil carros. E, mesmo com uma frota três vezes e meia maior que a de 1995 — hoje, temos 1,5 milhão de carros, contra 436 mil 19 anos atrás — , no ano passado, 408 pessoas perderam a vida em acidentes. É pouco menos da metade dos mortos de 1995.
Apesar da evolução positiva, ainda há muito a se fazer. Nos últimos 18 anos, não houve um único dia sequer em que uma família não tenha enterrado um parente morto em acidente. A contabilidade chega a 7,9 mil pessoas mortas — sendo 2.683 pedestres, 90 deles mortos na faixa (veja quadro). A sociedade que se antecipou e decidiu dar prioridade para quem caminha ainda carrega nos ombros o peso de fazer dos pedestres 30% de todas as vítimas do trânsito, percentual acima da média nacional, de cerca de 20%.
As autoridades de trânsito do DF desconhecem as razões pelas quais a proporção de pedestres mortos aqui ainda é maior do que a média nacional. “As nossas estatísticas são mais confiáveis do que em outras unidades da federação. Usamos os dados dos mortos no local e também aqueles que vêm a óbito até 30 dias após o acidente. Temos informações mais precisas”, supõe o diretor-geral do Detran, Jayme Amorim.
Também faltam respostas concretas para as fatalidades sobre os retângulos brancos. Uma iniciativa tímida, porém extremamente eficaz, lança alguma luz sobre o tema. Em 2008, um grupo de seis pessoas do Núcleo de Estatística do Detran se debruçou sobre os pontos no DF com mais registros de acidentes de trânsito para descobrir as causas das tragédias. Batizado de Central de Investigação e Tratamento de Acidentes (Cita), o grupo concluiu que, em algumas das tragédias analisadas, a precariedade de iluminação pública, a necessidade de poda das árvores nas proximidades das faixas e a sinalização ruim contribuíram para os acidentes fatais envolvendo pedestres.
Após implementadas as mudanças sugeridas pela Cita, constatou-se redução significativa das ocorrências. O sucesso da iniciativa gerou a promessa de incremento do grupo, com o aumento de servidores. Na prática, isso nunca aconteceu e, atualmente, a Cita conta com apenas dois servidores.
18 anos de faixa: Falta de respeito e de campanha
No ano passado, sete pessoas morreram ao tentar atravessar na faixa isso sem computar as que foram atropeladas e sobreviveram. Os flagrantes de motoristas que ignoram o pedestre são constantes e, desde 2009, não há grandes ações educativas
Por Adriana Bernardes, Correio Braziliense. Foto: Ronaldo de Oliveira/CB/D.A Press
Carina quase entrou na estatística de mortos: ela foi atropelada enquanto fazia a travessia
Cinco carros ignoraram Wellington Oliveira , que tentava atravessar na faixa
Até atingir a maioridade, o respeito à faixa de pedestre passou por altos e baixos. O pior momento foi em 2009, quando 11 pessoas perderam a vida enquanto faziam a travessia. Em 2006, foram nove mortes. No ano passado, os números voltaram a subir: sete fatalidades. Por pouco, a bancária Carina Araújo, 32 anos, não entrou para a estatística. Moradora de Águas Claras, ela foi atropelada por um motociclista durante a travessia destinada ao pedestre. “Eu fiz o sinal de vida, dois carros pararam e eu entrei na via. Quando passei na frente do segundo carro, apareceu um motoqueiro na terceira faixa e não tive tempo de correr”, relembra.
Com o impacto, Carina foi arrastada no asfalto. O motociclista Walter Marques Ferreira Filho, 18 anos, fugiu sem prestar socorro. Só apareceu na 21ª Delegacia de Polícia (Taguatinga) cinco dias depois, quando foi identificado pelos investigadores e intimado a prestar esclarecimentos. No depoimento, Walter alegou ter ficado com medo de represália por parte das testemunhas.
A bancária tinha apenas 14 anos quando as autoridades do DF decretaram que motoristas dariam prioridade para o pedestre na faixa. “Eu me lembro do clima daquele momento. O envolvimento das pessoas. Nas escolas, fazíamos trabalho sobre isso. Hoje, especialmente fora do Plano Piloto, os motoristas só param onde tem semáforo”, lamenta.
Enquanto a reportagem conversava com Carina em frente à faixa onde ela foi atropelada, o estudante de direito Wellington Gomes de Oliveira, 19 anos, tentava atravessar. Apesar de sinalizar com o braço a intenção de cruzar a via, os motoristas não pararam. Cinco carros avançaram antes que Wellington conseguisse passar. A mesma cena se repetiu com outros pedestres.
O jovem conta que, para evitar o perigo, ele segue pela calçada até o semáforo, aumentando o trajeto em alguns metros, para só depois chegar do outro lado da rua. “As pessoas perderam o costume. Isso tem que ser melhor ensinado na escolinha de trânsito do Detran porque tenho percebido que os motoristas mais jovens são os que menos respeitam. E a fiscalização precisa multar”, defende o universitário.
Falhas
O diretor-geral do Detran, Jayme Amorim, reconhece que ainda não há estudo sobre os motivos para os sucessivos aumentos de casos de desrespeito à faixa. “Pode ter sido um relaxamento do pedestre, e o condutor pode estar respeitando menos. A falta de campanhas de massa (do segundo semestre de 2009 até janeiro de 2014) pode ter contribuído. As pessoas necessitam sempre de serem lembradas dos seus direitos e deveres. Alguns acham que dirigir é uma coisa mecânica, e não é. É um ato de cidadania e o condutor precisa estar consciente disso”, diz Amorim.
Diretor de Policiamento e Fiscalização de Trânsito do Detran, Silvaim Fonseca acredita que o aumento dos registros de morte em 2006 e 2014 tenha relação com a Copa do Mundo e as eleições. Especialmente durante os jogos do Mundial, aumenta a quantidade de festas e de pessoas em bares. Assim como o número de eventos que demanda organização do trânsito por parte da fiscalização. “Com os auditores deslocados para organizar o trânsito, a fiscalização das ruas acaba comprometida e isso pode se refletir no aumento de casos”, cita Fonseca.
Somado a esse fator, acrescenta-se as limitações na fiscalização, que em grandes eventos acaba não conseguindo atuar em todas as frentes. Já em 2009, o aumento dos mortos na faixa pode ser explicado, em parte, pela greve dos servidores do Detran em reação a um projeto do então governador, José Roberto Arruda, que previa a criação da Companhia Metropolitana de Trânsito para fiscalizar as ruas e que esvaziava as atribuições da autarquia.
Professor de psicologia do trânsito na Universidade de Brasília (UnB), Hartmut Günther alerta que nessas contas ainda faltam os feridos. “Os mortos são o dado mais contundente e visível dos conflitos no trânsito. Porém, não das vítimas ‘pré-morto’, isto é, desde os que se safaram com susto até os que saíram com ferimentos graves e precisaram de tempo no hospital e/ou na fisioterapia para se recuperar. Seja como for, qualquer sinistro de trânsito tem uma série de sequelas, muitos dos quais incomensuráveis, razão pela qual, ficaremos com a ponta do iceberg”, alerta.
Ações para combater a guerra do asfalto
O respeito à faixa, o uso obrigatório do cinto de segurança e a instalação de radares foram instituídos durante o governo de Cristovam Buarque (Breno Fortes/CB/D.A. Press).
Há 20 anos, quando Brasília tinha 1,8 mil pessoas e 436 mil carros, a velocidade média das vias era de 120km/h. Naquela época, quando acontecia um acidente, a pergunta comum era “quantos morreram?” e não “onde?”, “quando?” ou qualquer outra expressão de pesar. Num cenário de guerra no asfalto, o caminho para a faixa foi pavimentado com três ações. A primeira delas, adotada em 1995: a obrigatoriedade do uso de cinto de segurança em todo o território do DF por meio do Decreto nº 16.351, em vigor a partir de 10 de março daquele ano. Até então, o equipamento era exigido somente nas rodovias. Apenas em 1997, o Congresso Nacional aprovou o novo Código de Trânsito Brasileiro (CTB), que exigia o uso do cinto em todo o território nacional.
Em 1996, com forte oposição de uma parcela dos deputados distritais, o então governador Cristovam Buarque deu início à fiscalização eletrônica de velocidade para fazer o condutor pisar no freio. O horror provocado pelas mais de 800 mortes nas vias em um único ano levou 25 mil pessoas ao Eixão em 15 de setembro de 1996 na caminhada pela Paz no Trânsito, promovida pelo Correio Braziliense. Com roupas e balões brancos, os rostos e os corpos pintados, os cidadãos de Brasília decretaram que as barbaridades cometidas ao volante precisavam ser freadas.
A mão espalmada criada pelo ex-subeditor de arte do Correio Ricardo Melo transformou-se em símbolo do desejo por um trânsito mais seguro. “Parece a mão suja de tinta impressa no papel. Tem relação com o lúdico”, define Melo. E o que foi decidido às pressas pelos editores da primeira página do jornal para a edição do dia seguinte virou uma marca permanente da luta por um trânsito mais seguro. “Lembro-me que, na marcha, havia muitos cartazes feitos à mão que reproduziam a mão espalmada. As escolas passaram a usar a imagem nas atividades com as crianças e algumas personalidades tiraram foto com a marca. Foi muito bacana”, destaca Melo.
Depois da lei do cinto e após reduzir a velocidade média das vias de 120km/h para 60km/h, estava aberto o caminho para o respeito à faixa, iniciado em 1º de abril de 1997. Primeiro, com uma ampla campanha educativa, durante quatro meses. Depois, com multa para o motorista infrator. “A primeira ideia era implantar a faixa numa área mais afastada, com pouco movimento de carros e de pessoas. Mas, do ponto de vista pedagógico, não era interessante. Com pouca gente, a ideia não se espalharia. No fim das contas, chegamos à conclusão de que o melhor seria implantar em todo o Plano Piloto, onde 80% da população circulava e por ser uma área com mais planejamento”, relembra Luiz Miúra, então diretor-geral do Detran.
Atualmente, Cristovam Buarque (PDT) exerce o cargo de senador. Ao olhar para trás, ele lembra ter sido difícil convencer alguns assessores próximos na empreitada de fazer o motorista parar na faixa. “Eu também tive um certo medo. Mas, com a obrigatoriedade do cinto e com a redução da velocidade média por meio dos pardais, avaliei que seria possível.”
Na avaliação de Buarque, a faixa em Brasília “pegou” porque foi tratada como uma questão de educação e não somente de engenharia. “Nós demos poder às crianças de cutucar os pais e dizer que tinha alguém esperando para atravessar na faixa. Empoderamos o pedestre e demos cidadania ao motorista que parava para os mais humildes”, lembra. “Mas o Correio Braziliense foi o grande pedagogo. Foi quem levou a ideia para Brasília. Mostrou os bons e os maus exemplos e ajudou a construir a autoestima da população”, cita Cristovam.
Fonte: Por Adriana Bernardes. Fotos Ronaldo Oliveira. Correio Braziliense -