Perto de completar 48 anos de atuação em Brasília,
os Alcoólicos Anônimos acumulam histórias de sofrimento, mas também de
ressurreição. Nos últimos anos, a preocupação fica pelo perfil cada vez mais
jovem dos frequentadores
Por OTÁVIO AUGUSTO-Carlos Vieira/CB/D.A Press
Em 5 de setembro, os Alcoólicos Anônimos (AA)
completam 48 anos em Brasília e 70, no Brasil. Mas a data comemorativa traz um
alerta: em três décadas, houve um rejuvenescimento substancial dos integrantes
do grupo na capital do país. Se, em meados dos anos 1990, quem buscava ajuda
permeava a casa dos 50 anos, hoje jovens entre 20 e 30 representam a maior
parcela desse público. Isso significa que a cervejinha de domingo ou o vinho a
mais no jantar têm causado problemas cada vez mais cedo. O cenário, apesar de
preocupante, traz um alívio. Nunca tanta gente procurou ajuda. Somente no DF, 3
mil pessoas participam das reuniões de tratamento.
Neste ano, duas pesquisas colocaram o Distrito
Federal no centro dessa discussão que há tantos anos é a bandeira dos AA. Um
estudo feito pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) mostra que o DF é
a unidade da Federação que mais consome bebida alcoólica no país. E um
levantamento do Ministério da Saúde é ainda mais preocupante. Brasília é a
quarta capital que mais consome álcool de forma abusiva — 22,6% dos
entrevistados disseram beber em demasia.
Para quem tem controle sobre as bebidas alcoólicas,
o líquido não é grande problema. Entretanto, para uma parcela da população, os
goles são um risco iminente. É que, em casos de alcoolismo, doença que atinge
cerca de 10% da população, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), a
incapacidade de controlar a ingestão devido às dependências física e emocional
degringola de tal forma o comportamento, que um amigo ou parente parece se
transformar em outra pessoa. Na última quarta feira, a reportagem reuniu três
alcoólatras para debater o assunto. Eles participam de encontros dos AA e são
taxativos: é preciso mais atenção a esses casos.
A família do advogado Benjamim*, 34 anos, se chocou
quando ele esfaqueou um homem em um bar na Asa Norte e agrediu um sobrinho, à
época, com 20 anos. O policial militar da reserva Fernando*, 55, bebia e abria
fogo indiscriminadamente em quem encontrasse pelo caminho. Uma vez, atropelou
um casal em Valparaíso. O bancário aposentado Luiz*, 73, vendeu um carro e se
endividou para manter o vício. O casamento ficou por um fio. A seguir, o leitor
confere como o álcool atrapalhou a trajetória de pessoas comuns, mas que
perdiam os limites após o primeiro gole.
“Nem os meus filhos queriam me abraçar”
Há mais de uma década, o policial militar da
reserva Fernando, 55 anos, não bebe. A mudança ocorreu após um rompante
extremo. Ele quebrou toda a casa onde vivia com sua mulher. “Até os ovos, eu
joguei nas paredes. Nada ficou inteiro. Os vizinhos chamaram a polícia”,
relembra. Foi o estopim para acabar o casamento de 25 anos. A situação saiu do
rumo de tal forma, que, aos 44 anos, ele acabou internado em uma clínica de
reabilitação. Os dois meses de hospitalização mudaram a história. “Eu saía de
casa com duas camisas no carro. Sempre que atirava em alguém, eu trocava.
Dirigia sem a menor condição. Se eu não parasse de beber, eu morreria”, avalia.
A depressão o acompanhou durante muito tempo. “Eu
significava o fim da festa, a briga e a desordem. Nem os meus filhos queriam me
abraçar”, lamenta. Fernando chegou a ser encontrado dormindo em uma caixa
d’água, no alto de um prédio. Outra vez, desapareceu por três dias. Em sua
companhia, ficavam apenas a arma de fogo e a garrafa de cachaça. “Hoje, o que
eu vivo é o renascimento. Não tenho de me preocupar onde enterrar a cara. Sofro
com algumas lembranças, mas estou vivo e reconstruindo a minha vida aos poucos.
É muito triste saber que se tem uma casa e que se não pode voltar para lá.”
Fernando viveu as duas faces do alcoolismo. Ele
perdeu dois afilhados para a bebida. “É difícil conviver. É preciso tolerância
e paciência. Recolher a pessoa bêbada, vomitada e sem nenhuma condição de
responder por si é muito dolorido. Nem sei quantas vezes vi os meus afilhados
assim e outras tantas que cheguei assim”, lamenta. Hoje, Fernando participa de
dois grupos dos AA — um em Alexânia (GO) e outro, na Candangolândia. “Ajudo as
pessoas a entenderem o que eu entendi. E a viverem com um pouco mais de paz.
Mas é um dia de cada vez.”
“O álcool transformava o meu jeito de pensar”
Daqui a cinco meses, o advogado Benjamim, 34 anos,
será pai. Um pouco antes, o homem alto, forte e de barba volumosa completará
quatro anos sem pôr uma gota sequer de bebida alcoólica na boca. “Quando saí da
casa dos meus pais, fui morar perto de um bar para sempre ter bebida por
perto”, conta. “O primeiro dos meus muitos porres foi aos 14 anos”, revela.
Cerveja, uísque e conhaque eram os preferidos. “Mas houve um tempo em que bebia
de tudo”, acrescenta.
Durante mais de uma década, Benjamim prometeu a si
que largaria o copo. Em vão. “Toda vez que eu brigava ou esquecia o que havia
acontecido na noite anterior, falava a mesma coisa. Não chegava a uma semana
sem beber”, lamenta. Os episódios violentos traumatizaram a família. Os amigos
se afastaram. E o namoro acabou. Hoje, ele está casado com a mulher que um dia
o deixou por causa da bebida. “A retomada da confiança é aos poucos. O álcool
transformava o meu jeito de pensar e provar que aquilo é um efeito da bebida
não é fácil”, destaca.
Ele não encara a bebida como inimiga. “Parei de
beber no período de festas de fim de ano. As pessoas escondiam as bebidas de
mim. Mas, se ela ficar no canto dela e eu, no meu, não há problema. Hoje,
consigo ir a um bar comemorar o aniversário de um amigo. Peço o meu
refrigerante, converso com as pessoas, não submeto ninguém a uma situação
inconveniente. Mas um dia tive obsessão pela bebida”, reconhece.
“Não é fácil controlar a vontade de beber”
A primeira experiência com o álcool aconteceu na
adolescência. A vodca era o ponto fraco do bancário aposentado Luiz, 73 anos. À
época, aos 15, 16 anos, bebia para se sentir mais à vontade. Disfarçava os
problemas de autoestima com duas doses. “Eu ficava relaxado, conversava mais e
me sentia mais bonito”, conta. Com o tempo, a quantidade de copos cresceu.
“Passei a tomar três, cinco ou quantos fossem necessários”, recorda, com os
olhos azuis marejados.
A vida seguiu, Luiz estudou, tornou-se bancário,
casou-se e teve filhos. Em todo o caminho, a bebida se fez presente. As coisas
começaram a sair do controle por volta dos 40. O vício impôs a perda de bens
materiais, porém, mais que isso, Luiz perdeu valores. “Não tinha
responsabilidade. Tinha cargo de chefia, mas como eu questionaria um
funcionário se eu estava bêbado no início da manhã? Na maior parte dos dias, eu
não conseguia ir trabalhar”, detalha, com a voz embargada.
A reviravolta completou 27 anos. “O alcoolismo não
é problema moral, mas sim, de saúde. Não é mau-caratismo. Quando percebi isso,
procurei ajuda. Não é fácil controlar a vontade de beber, reconstruir os laços
e tocar a vida em frente”, explica. Luiz retomou a rotina aos poucos e
trabalhou mais cinco anos até se aposentar. Hoje, coordena um dos 100 grupos
dos Alcoólicos Anônimos do DF. “O meu pai parou de beber quando eu tinha 6
anos, mas tenho lembranças de ele perturbando a nossa família. Não queria
repetir aquelas cenas”, conclui.
* Nomes fictícios
Palavra de especialista
“Os danos são muito grandes”
“Do número de pessoas que experimentaram álcool, a
primeira vez foi antes de 12 anos, segundo um estudo de 2014. Estamos
permitindo e levando as pessoas a beberem. Isso mostra como a bebida está
presente na nossa casa. O dado é escandaloso porque é contra a lei o consumo
antes dos 18 anos. Nessa faixa etária, o cérebro está em formação. Os danos
para a criança ou para o adolescente que consome álcool são muito grandes.
Temos uma redução da percepção dos riscos. Estamos negligenciando o álcool
quando não tratamos isso como saúde. O alcoolismo é uma doença, e temos de
fazer essa abordagem, para ser tratado como tal. Tratamos de forma
desrespeitosa.”
Antônio Geraldo da Silva é presidente da Associação
Psiquiátrica da América Latina
e superintendente técnico da Associação Brasileira
de Psiquiatria
Para saber mais
Imprudência
Uma pesquisa do Ministério da Saúde aponta que o
Distrito Federal ficou em quarto lugar quando o assunto é beber e dirigir.
Aqui, 15,7% dos entrevistados admitiram que assumem o volante após ingerir
bebidas alcoólicas. No ranking, a cidade ficou atrás de Goiânia (GO),
Florianópolis (SC) e Palmas (TO).
Procure ajuda
Alcoólicos Anônimos DF
Endereço: Edifício Eldorado, Sala 413, Conic
Telefone: (61) 3351-9644
Site: aaareadodf.org