Racismo e sexismo: há a baixa representatividade de mulheres negras em postos de comando - Foto: Divulgação
Dados indicam que diretores negros — homens e mulheres somados — chegam ao ínfimo 2,1%
Tapete vermelho, flashes, lugares na primeira fila e o Oscar para Melhor Roteiro e Melhor Atriz saem para duas pessoas negras. A cena fictícia acontece na série Hollywood, de Ryan Murphy, em que retrata os anos 40 com igualdade para artistas negros, homossexuais e asiáticos. Na vida real é diferente! Entre a primeira mulher negra a ganhar a premiação, Hattie McDaniel, em 1940, com “...E o vento levou”; para a segunda, foram mais de 50 anos, momento que Whoopi Goldberg levou a estatueta em 1990, por sua interpretação em Ghost.
O protagonismo negro é pouco discutido e há a baixa representatividade de mulheres negras em postos de comando em um set de filmagem. Adélia Nascimento é a primeira diretora a produzir um longa-metragem, no Brasil. Com baixo recurso, a cineasta realizou “Amor Maldito”, em 1984, de modo integralmente cooperativo. De lá para cá, alguns espaços foram conquistados, mas ainda não há um contexto de equidade racial nas produções cinematográficas e audiovisuais.
Projeto Diaspóricas' conversa com profissionais do cinema e audiovisual sobre os espaços que ocupam. Foto: Divulgação
Para celebrar o Dia 25 de julho, Dia Internacional da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha — data que se reafirma a necessidade de enfrentar o racismo e o sexismo vividos por mulheres que sofrem com a discriminação racial, social e de gênero —, o "Projeto Diaspóricas" conversa com profissionais do cinema e audiovisual sobre os espaços que ocupam.
Estudo realizado pela Agência Nacional do Cinema (Ancine) e pelo Grupo de Estudos Multidisciplinar em Ações Afirmativas da UERJ (GEMAA), em 2018, sobre os 142 longas nacionais lançados no circuito em 2016, aponta, sem nenhuma surpresa, que a indústria de cinema é dominada por homens brancos: 75,4% são diretores dos filmes, 59,9% assinam roteiros, enquanto as mulheres brancas correspondem a 19,7% de diretoras e 16,2% de roteiristas.
Os diretores negros — homens e mulheres somados — chegam ao ínfimo 2,1% na direção, 2,1% no roteiro e 2,1% na produção executiva. Nenhuma mulher negra dirigiu filmes lançados comercialmente em 2016. A Ancine também analisou que em 2022, nenhum filme de grande público foi dirigido por mulheres – brancas ou negras.
“Com os dados da Ancine, percebe-se que para se ter uma produção audiovisual plural, com vistas às questões de raça, gênero e territorialidades é imprescindível a implementação de políticas afirmativas previstas em lei, para que seja possível ampliar a participação de pessoas negras que pleiteiam os recursos”
Zanza Gomes, doutora em Comunicação
Produção Negra
Para a doutora em Comunicação, Coordenadora da Associação de Profissionais do Audiovisual Negro (Apan), em Goiânia, Zanza Gomes, as pessoas negras estão fazendo cinema. Há 16 anos o Festival Encontro de Cinema Negro Zózimo Bulbul, que acontece no município do Rio de Janeiro, é referência nacional e internacional na produção audiovisual negra e africana. O evento mobiliza mais de mil pessoas cadastradas na Apan.
Ela explica que por meio da associação busca-se capacitação, aperfeiçoamento e cria uma rede de contatos para fortalecer o audiovisual negro brasileiro em todas as regiões do país. “Além disso, temos filmes como ‘Marte Um’, do diretor mineiro, Gabriel Martins, que, em 2022, conquistou oito troféus Grande Otelo, o prêmio mais importante do cinema brasileiro”, relembra.
Trabalho: conquistas são frutos de articulação dos profissionais. Foto: Divulgação
De acordo com Zanza, as conquistas são frutos de muito trabalho e articulação dos profissionais. Entretanto, quando se pensa em políticas afirmativas, vê-se uma disparidade abissal nas oportunidades. “Com os dados da Ancine, percebe-se que para se ter uma produção audiovisual plural, com vistas às questões de raça, gênero e territorialidades é imprescindível a implementação de políticas afirmativas previstas em lei, para que seja possível ampliar a participação de pessoas negras que pleiteiam os recursos”, afirma.
Para aumentar a diversidade de gênero e raça no audiovisual, a professora do curso de Cinema e Audiovisual da Universidade Estadual de Goiás (UEG), doutora em Comunicação pela Universidade de Brasília (UnB), fundadora e diretora do Cineclube Maria Grampinho, Ceiça Ferreira, acredita que é importante ampliar a discussão e criar condições para que se tenha mais profissionais negras no audiovisual, nas diversas funções, em especial de roteiro e direção, que são as de mais prestígio.
“Enquanto professora, acredito que a primeira iniciativa começa dentro da universidade, no exercício diário de assistir e analisar produções dirigidas por pessoas negras, suas dinâmicas de produção, estilos e configurações estéticas”, afirma.
“Ocupar espaço de poder e prestígio é fundamental para que se tenha mais diversidade nos sets,
Ceiça Ferreira, professora de Cinema e Audiovisual na UEG
Ceiça diz que somente neste ano, na 25ª edição do Festival Internacional de Cinema e Vídeo Ambiental (Fica) – a principal janela de exibição do cinema goiano — pela primeira vez houve uma programação voltada para ações afirmativas com sessões, debates, rodas de conversa e oficinas. A iniciativa é fruto de uma parceria com a Apan.
A jornalista, pesquisadora e diretora da série “Diaspóricas”, Ana Clara Gomes, acredita que a abordagem da temática do protagonismo negro feminino é bem-vida, pois se consegue pensar coletivamente, elaborar de forma colaborativa soluções para tencionar a estrutura no Brasil de que o cinema de visibilidade é feito apenas por pessoas brancas.
Segundo Ana Clara, o Brasil tem um histórico de que o cinema é feito com política pública, que é regido pela meritocracia em que as pessoas brancas estão sempre nos primeiros lugares para conseguir fomento e realizar suas obras.
“Então, quando se discute o protagonismo negro feminino é uma forma de criar soluções colaborativas para fazer com que haja uma realidade de pessoas pretas produzindo cinema. Tendo acesso aos meios de produção, aos equipamentos, para habitar os espaços de visibilidade do cinema”, pondera.
Ceiça Ferreira, doutora em Comunicação pela Universidade de Brasília (UnB). Marcus Vinícius Beck
Cargos de poder
No Brasil, conforme dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 56,1% dos brasileiros são negros. Embora seja a maioria da população, o número pouco se reflete em cargos de poder em diversas profissões. A fotógrafa e assistente da Apan, Andresa Moreno, diz que a falta de representatividade no cinema contribui de várias formas para apagamento das minorias sociais, seja pela ausência de personagens que as representam, seja pela representação estereotipada, que parte de uma perspectiva de mundo alheia.
Segundo Andresa, o cinema e as produções audiovisuais no geral ocupam, hoje, um importante espaço cultural na vida social. Com o avanço das mídias, das redes sociais, dos streamings, por mais que se perceba um aumento na quantidade de personagens negros, indígenas e de outras minorias nas produções, ainda são personagens estereotipadas, que ocupam lugares subjugados nas histórias, sem mobilidade social. “Isso limita o horizonte representativo. Faltam histórias de resistência, de grandeza, de dignidade, de sucesso e, sobretudo, de justiça com as origens”, analisa.
Ter uma diretora negra ou uma roteirista negra possibilita uma maior participação de profissionais negros e negras em diferentes funções
Ceiça Ferreira, professora de Cinema e Audiovisual
Mas como quebrar o monopólio de quem constrói a representação no audiovisual? Para Andresa, pode-se quebrar oportunizando os lugares de poder, de decisão e de realização, com políticas afirmativas nos editais, abertura de mercado, por pressão coletiva que promova debates e discussões para conscientização a respeito do monopólio.
“Organizações de aquilombamento que levantam a problemática e necessidades é um caminho para se construir uma força coletiva”, aponta. “Ocupar espaço de poder e prestígio é fundamental para que se tenha mais diversidade nos sets, pois as dinâmicas de trabalho no cinema e audiovisual são pautadas por redes de contato. Logo, ter uma diretora negra ou uma roteirista negra possibilita uma maior participação de profissionais negros e negras em diferentes funções, nos departamentos de fotografia, arte e produção”, explica Ceiça.
A exemplo do trabalho realizado por rede de contato, pode-se citar duas articulações de profissionais negras e negros que se desenvolvem em Goiânia. A primeira, é o Cineclube Maria Grampinho, coordenado pela professora Ceiça. Localizado, no Setor Shangri-lá, na Região Norte de Goiânia, o cineclube é um espaço de exibição e circulação de filmes voltados ao protagonismo negro, feminino e indígena.
O espaço promove rodas de conversa com diretoras, roteiristas e realizadoras do audiovisual, em que se constrói com a plateia, perspectivas e olhares múltiplos sobre as narrativas audiovisuais, para se buscar representações plurais, complexas e diversas.
Outro lugar de fomento ao protagonismo negro no cinema é o Festival Audiovisual do Vera Cruz (Favera), que acontece no Conjunto homônimo, na Região Noroeste da capital. Coordenado pelo cineasta, realizador e produtor, Raphael Gustavo, o Favera, acontece no mês de maio. Há dez anos leva o cinema e cultura para a comunidade, oferece oficinas formativas em audiovisual, mostra escolar e laboratório de criação de projetos. O festival ainda oferece empregos aos profissionais do audiovisual, fornecedores e prestadores de serviços, além de promover a economia local.
Editais de fomente à cultura ampliam presença negra. Foto: Divulgação
Repetição em Goiás
Embora a indústria cinematográfica seja vista como vanguardista, essa característica não significou visibilidade de gênero e tal questão ainda é considerada algo menor ou panfletária, que ainda está presente no cinema goiano. Para os avanços na linguagem, estilo e técnica cinematográfica historicamente estão vinculados ao padrão estético branco e masculino, naturalizado como universal.
“No cinema goiano isso não é diferente, as inovações geralmente são creditadas a homens brancos, como por exemplo, a ênfase dada ao cineasta João Bennio, que produziu o longa 'O Diabo Mora no Sangue' (1968). Porém, antes dele, em 1966, a atriz e teatróloga Cici Pinheiro investe em um filme de ficção, 'O Ermitão de Muquém', que não foi finalizado por falta de recursos, mas que faz dela uma pioneira do cinema em Goiás”, relata.
Para Ana Clara, no cinema goiano, os espaços femininos têm surgido de forma mais efervescente, porém há muito que se percorrer, visto que o cinema continua sendo feito por homens brancos, as premiações e o circuito comercial continuam habitado, predominantemente, pelos mesmos homens que estão há tempos no mercado. “Então, não adianta ter histórias femininas, histórias dos corpos negros se não forem contadas sobre quem está falando”.
Ceiça Ferreira destaca que a mudança de poder se atrela à emergência de cineastas negras, negros, indígenas e de grupos minoritários que questionam a estrutura vigente. “Nas últimas décadas, a formação na área com os cursos de graduação em cinema e audiovisual, a digitalização do audiovisual e políticas públicas de fomento à produção tem possibilitado que mais mulheres e pessoas negras ingressem no mercado de cinema e audiovisual em Goiás”, destaca.
“Aos gritos mesmo, porque é forjando possibilidade que se consegue se expandir”
Ana Clara, cineasta
Segundo Ceiça Ferreira, o cinema goiano ainda dá passos lentos. Mas a presença negra começa a se ampliar graças aos editais de fomento à cultura, e em especial, o audiovisual, o que possibilita às novas realizadoras produzir filmes e permanecer no mercado.
A professora cita que durante o Fica 2024, duas produções de diretoras negras foram lançadas: Diaspóricas 2 - o filme, da jornalista e pesquisadora Ana Clara Gomes - que retrata a resiliência de artistas negras na cena musical de Goiânia; e, o curta, Meada Cor Kalunga, de Marta Kalunga, Alciléia Torre e Analu Reis de Sá - documentário que relata o encontro, as conversas e a partilha de conhecimentos tradicionais acerca da coleta de troncos de raízes do Cerrado para o tingimento de tecidos no Quilombo Vão de Almas, em Goiás.
Já Ana Clara acredita que já há muitas vozes caladas, que falta é gritá-las, para abrir mais caminhos e seguir novos rumos. “Aos gritos mesmo, porque é forjando possibilidade que se consegue se expandir”, diz. A cineasta sugere que pessoas negras, periféricas e mulheres podem ter uma estratégia comum de criação de rede de apoio para que se consiga um trabalho de fomento de políticas públicas.
“A ideia é que se traga as nossas e os nossos para somar, potencializar nossas histórias no cinema. É o que tento fazer no meu processo artístico profissional, que é engajar e deslocar para perto, pessoas que tenham as mesmas concepções e mesmos objetivos que é fazer com que o cinema negro feminino se expanda cada vez mais.
Fonte: https://www.dm.com.br/
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