No contexto das Assembleias de Deus no Brasil a tensão entre santidade e legalismo esteve presente desde seus primeiros anos. Uma importante questão de natureza doutrinária foi vista, por exemplo, pela liderança assembleiana dos anos 1940 como uma ameaça ao conceito de salvação unicamente pela graça. Em 1946 a Assembleia de Deus em São Cristóvão, Rio de Janeiro, na época pastoreada pelo missionário Otto Nelson, acreditando que a Igreja estava se mundanizando, reuniu o seu presbitério para juntos emitirem uma resolução com os ditames do que seria lícito ou não um membro da igreja fazer ou praticar. O presbitério acreditava que, por conta da frouxidão dos usos e costumes, especialmente por parte das mulheres, a igreja estava ficando fraca ao deixar o Espírito Santo triste e, portanto, sem liberdade de ação. Dessa forma, o presbitério achava por bem que se emitisse uma resolução que viesse orientar, o que eles entendiam, como sendo um viver modesto e santo.
Assim, no dia 4 de junho de 1946 a referida resolução foi redigida nos seguintes termos:
"1) Não será permitido a nenhuma irmã membro desta igreja raspar sobrancelhas, cabelo solto, cortado, tingido, permanente ou outras extravagâncias de penteado, conforme usa o mundo, mas que se penteiem simplesmente como convém às que professam a Cristo como Salvador e Rei. 2) Os vestidos devem ser suficientemente compridos para cobrir o corpo com todo o pudor e modéstia, sem decotes exagerados e as mangas devem ser compridas. 3) Se recomenda às irmãs que usem meias, especialmente as esposas dos pastores, anciãos, diáconos, professoras de Escola Dominical, e dos que cantam no coro ou tocam. 4) Esta resolução regerá também todas as congregações desta igreja. 5) As irmãs que não obedecerem ao que acima foi exposto serão desligadas da comunhão por um período de três meses. Terminando este prazo, e não havendo obedecido à resolução da igreja, serão cortadas definitivamente por pecado de rebelião. 6) Nenhuma irmã será aceita em comunhão se não obedecer a estas regras de boa moral, separação do mundo e uma vida santa com Jesus. Estamos certos de que todas as irmãs que amam ao Senhor Jesus cumprirão, com gozo, o que foi resolvido pela igreja. O Ministério".
Essa resolução foi publicada no jornal “O Mensageiro da Paz”, órgão oficial da denominação, na primeira quinzena de julho de 1946. O teor dessa resolução provocou diversas reações na liderança do Brasil assembleiano. O assunto foi pautado para ser discutido pelos membros da Convenção Geral na cidade de Recife em outubro de 1946. Na reunião convencional, o conteúdo da resolução da igreja de São Cristóvão publicada no mensageiro da paz foi duramente criticado pelo pastor José Teixeira Rego. Rego, juntamente com outros pastores achavam muito “legalista” o conteúdo da resolução. O escritor Silas Daniel em seu livro História da Convenção Geral das Assembleias de Deus no Brasil destaca que “O assunto foi considerado tão sério que, pela primeira vez na história da Convenção Geral das Assembleias de Deus no Brasil, houve uma sessão extraordinária à noite, apenas para tratar do assunto”.
Silas Daniel observa que comentários que circulavam na época davam conta de que a resolução da AD de São Cristóvão foi influenciada pela AD de Madureira que era muito rígida na área de costumes e que considerava as irmãs de São Cristóvão muito “liberais” em sua forma de vestir e pentear. Daniel observa ainda que “apesar de as resoluções de São Cristóvão terem sido atribuídas ao Presbitério da igreja, sabe-se que Gunnar Vingren e Otto Nelson foram os missionários suecos mais rígidos em termos de usos e costumes”.
Uma possível explicação para a origem da observância mais rígida de usos e costumes por parte da liderança pentecostal nas primeiras décadas da implantação da AD no Brasil pode estar mais associada ao Movimento de Santidade nos Estados Unidos da América do que ao pietismo escandinavo. Uma vez que Samuel Nyström, missionário sueco que se opôs à rigidez da resolução, viera do pentecostalismo escandinavo, enquanto Gunnar Vingren e Otto Nelson, ambos com passagem pela AD do Rio de Janeiro, mesmo sendo batistas suecos, vieram dos Estados Unidos, onde conviveram com o Movimento de Santidade favorece esse entendimento. Sobre observância dos usos e costumes pelo Movimento de Santidade americano, William Kostlevy destaca em seu Dicionário Histórico do Movimento de Santidade que:
“Há muito tempo, o vestuário é visto como uma forma de as pessoas do movimento de santidade demonstrarem seu compromisso cristão. Convencido de que as roupas caras levavam ao orgulho e eram um mau uso do dinheiro, que seria mais bem gasto com os pobres, John Wesley incentivou seus seguidores a se vestirem com simplicidade. Os pontos de vista de Wesley sobre vestimentas simples foram continuados pelos primeiros defensores da santidade, como Charles G. Finney e Phoebe Palmer (...) objetos de proibições especiais com relação à vestimenta entre os homens eram gravatas e, mais tarde, camisas de manga curta (...) com relação ao vestuário feminino, o movimento de santidade do século XIX se opôs às rendas extravagantes (...) Algumas entidades de santidade, especialmente aquelas envolvidas no trabalho missionário, adotaram uniformes para homens e mulheres."
O pastor Samuel Nyström, na época Presidente da Convenção Geral, deixou claro que ele e a missão sueca eram totalmente contrários ao texto da resolução de São Cristóvão. Depois de muito debate, ficou acertado que a igreja de São Cristóvão se retrataria e o Presidente da Convenção faria um texto corrigindo o que eles acreditavam ser um equívoco da resolução de São Cristóvão. Depois de redigido, o texto deveria ser publicado no jornal “O Mensageiro da Paz”.
A meu ver, não há dúvidas que a intenção dessa resolução parecia ser nobre uma vez que buscava a pureza da igreja. Contudo, se tornou problemática por conta de não observar alguns parâmetros de natureza lógica, teológica e doutrinária. Primeiramente, antes de ser publicizada, deveria ter sido apresentada à liderança nacional, o que parece não ter sido feito. Assim, o carro foi colocado adiante dos bois. Em segundo lugar, a resolução confundiu costume com doutrina. O costume é local, enquanto a doutrina é universal, isto é, geral. A doutrina tem validade para todos os lugares, povos e etnias; costume, não. Ele varia de lugar para lugar. Em terceiro lugar, a resolução confundiu “preceito” com “princípio”. O preceito é a regra, o mandamento, a norma. Por outro lado, o princípio é o que está por trás do mandamento, isto é, o espírito da coisa. Não basta conhecer a “letra”, mas o que, de fato, ela está querendo comunicar ou transmitir.
Assim, na primeira quinzena de janeiro de 1947 foi publicada no jornal o Mensageiro da Paz o artigo de Samuel Nyström. O título do artigo foi: “Dando Lugar a Operação do Espírito Santo”. O texto é o que segue:
“Não por força nem por violência, mas pelo meu Espírito, diz o Senhor dos Exércitos” (Zc 4.6). Em qualquer tempo, lugar ou circunstância, devemos lembrar-nos que não se consegue fazer a obra do Senhor por força nem por meios violentos, resoluções ou imposições, mas a obra do Senhor se realiza pela intervenção criativa de Deus e pela lei do crescimento externo da obra do Senhor, mas igualmente quando se tratar do crescimento interno desta, tanto individual como coletivamente. Mesmo durante a Dispensação da Lei, a Lei não conseguiu outra coisa senão descobrir e pôr o pecado em atividade, tendo como resultado a morte. Paulo disse: “Quando veio o mandamento, reviveu o pecado e eu morri. O mandamento que era para a vida, esse achei que era morte, porque o pecado, achando ocasião, me enganou pelo mandamento e por ele me matou”, Rm 7.9-11. Enquanto a fé não tinha vindo, a Lei teve um alvo como pedagogo: conduzir homens a Cristo. Mas, tendo vindo a fé, não estamos mais debaixo do pedagogo (a Lei), e nem devemos fazer ressuscitar leis ou inventar outras leis para que não fiquemos no lugar dos gálatas, que foram chamados insensatos e a respeito dos quais Paulo temia que todo o seu trabalho se tornasse vão (Gl 3.11). Cristo veio com a graça e, então, a Dispensação da Lei se encerrou. Em lugar do mandamento prévio, que foi ab-rogado por sua fraqueza e inutilidade, pois “a Lei nada fez perfeito”, foi introduzida uma melhor esperança, pela qual nos chegamos a Deus: Cristo, que é nosso Sacerdote, segundo o poder de uma vida indissolúvel (Hb 7.16-19). Portanto, o que realmente tem valor para nós é “a fé que opera por amor”, por isso não nos justificamos pela Lei ou leis, para não sermos decaídos da graça e separados de Cristo (Gl 5.6). Estatutos de ordenanças para os que já morreram com Cristo não têm utilidade nenhuma, segundo as palavras de Paulo. Estas podem, sem dúvida, ter certa aparência de sabedoria em culto voluntário, e de humildade e severidade para com o corpo, mas não têm valor algum (Cl 2.20-23). As ordenanças para manifestar humildade e severidade para com o corpo servem para satisfazer a carne, o erro, e elas com facilidade arranjam os que se julgam mais santos do que outros, e isto resulta em inchação vã, e cria o espírito de fariseu, que é o maior impedimento para as bênçãos do Deus. Ao contrário, o que vem sendo operado pelo Espírito Santo quebranta e derrete as durezas do coração, operando a verdadeira humildade, e esta não tem o enfeite exterior como base da santificação ou para ser membro de uma igreja, mas o homem novo, nascido pelo Espírito e dirigido pelo Espírito. O homem que está escondido no coração se conhece por um vestido incorruptível, por um espírito manso e tranquilo, que é de grande estima diante de Deus (1Pe 3.3-4). Este nascido do Espírito, seja homem ou mulher, não procura se exibir nem com vestidos nem com sabedoria ou seus talentos, nem com o que possui materialmente, e ainda menos com os seus dons e posição espirituais, o que seria o cúmulo da vaidade. Não é um apaixonado por modas e as suas mudanças, mas é discreto na sua aparência. Não se veste para que o vestuário chame atenção pela sua extravagância para a sensualidade, nem se veste para que todos o notem pelo seu modo esquisito de trajar. Há muitos países e também muitas formas de trajar neste mundo, bem como muitos climas diferentes, e tudo isto deve ser considerado, mas como a Palavra diz: ‘Com toda modéstia e sobriedade’. O que a Escritura ensina em relação a este assunto é que as mulheres devem ser castas e tementes a Deus, tanto as que são casadas como as moças e, então, tais, obedientes como Sara, não produzirão escândalos. Temos as advertências neste sentido em 1 Timóteo 2.9-10 e 1 Pedro 3.1-6, e convém atentar para a palavra inspirada, então o Espírito Santo operará em vós o que for digno e de boa fama, e sereis agradáveis a Deus. Lembremo-nos também que há muitas outras coisas que são igualmente perigosas para a obra do Senhor, que só pelo Espírito Santo poderão ser removidas, como o amor ao dinheiro, que nem sempre ostenta com a “lapela da avareza” para se ver, entretanto é a raiz de todos os males. O homem ostentando justiça própria, criticando tudo e todos, é um indivíduo perigoso para o avanço e a unidade da obra do Senhor, porque é difícil para o convencer e a seus adeptos. Mas, é pelo poder do Espírito do Senhor que a obra de Deus irá avante. Ele verdadeiramente só se pode servir dos que são humildes, prontos para deixar os seus próprios planos para edificação da Igreja e da sua santificação, e a deixar o Espírito Santo usar a Palavra de Deus para este fim. Então, será “Deus o que opera eficazmente em vós tanto o querer como o perfazer, segundo a sua boa vontade”, Fp 2.13 (Samuel Nyström)".
O artigo do missionário Samuel Nyström, como a questão exigia, foi extenso e com forte embasamento teológico. É fácil de se perceber uma refutação enérgica ao que ele, juntamente com os demais membros do colegiado, considerava um exagero. Com profundidade bíblica, Nyström enfatizou com grande força o evangelho da graça de Deus. Esse artigo do missionário Samuel Nyström, que se tornou uma resolução convencional, estabeleceu um parâmetro através do qual se tornou possível distinguir costume de doutrina.
Pr José Gonçalves
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