Cartão postal do Monumento ao Trabalhador, fotografado em 1972
Pedro Célio se pergunta sobre qual deveria ser a postura quando um monumento em área pública é destruído
O passado, diria o escritor estadunidense William Faulkner, nunca está morto. Nem sequer passou. Há bons anos, o Brasil oscila entre a epidemia de amnésia social, essa patologia que os negacionistas rejeitam a existência na sociedade, ou a tentativa fracassada de conciliação com os bárbaros. Pergunte por aí: você já ouviu falar do Monumento ao Trabalhador? Desconfia-se que um ou outro falará sim - mas muitos dirão que não.
Essa tendência foi registrada em estudo da Universidade Federal de Goiás, a UFG, em 2017. Os pesquisadores ouviram 288 pessoas - com idade mínima de 40 anos - que chegaram a Goiânia um ano antes de o monumento ser destruído, ato consumado em 1986. Onze indagações foram realizadas, com três pontos elaborados para mapear as referências políticas da Capital goiana - e os moradores tampouco imaginavam o que significava a obra.
Erguido em 1959 na Praça Americano do Brasil - hoje Praça do Trabalhador -, o monumento foi vandalizado dez anos depois de ser inaugurado pelo Comando de Caça aos Comunistas (CCC), milícia de extrema direita que humilhara o elenco da peça “Roda Viva”, em São Paulo, no ano de 1968. A barbárie goianiense é narrada pelo cientista político Pedro Célio, professor da Faculdade de Ciências Sociais da UFG, num texto ágil e com fôlego.
Na obra “1969 - 2018: Um Crime Contra a Cultura e a Memória”, o professor se pergunta sobre qual deveria ser a postura quando um monumento em área pública é vandalizado. “Lamentar o ocorrido, mas sobretudo olhar pra frente, atento para que ‘incidentes’ semelhantes não mais ocorram? Ou, se for o caso, reconstruí-lo por inteiro?”indaga ele, no livro que será lançado hoje, às 19h, no Sindicato dos Docentes da UFG, na Vila Nova.
Sob o clima de recrudescimento da repressão, nenhuma providência foi tomadaPedro Célio, cientista político
Pedro responde a si próprio, em seguida, ao explicar que há uma resposta consensual a tais questionamentos, quando se tem “o mínimo de compromisso com as noções de preservação de monumentos históricos”. Segundo ele, é preciso trabalhar para que haja uma recuperação imediata do monumento vilipendiado pelos adeptos da incivilidade, de forma a adotar medidas preventivas cuja finalidade seja evitar novos ataques à memória, à arte e à cultura.
Numa perspectiva histórica, de tempo nublado e trovoada no céu, vivia-se naquela noite de 1969 sob a política da pólvora ditatorial. Os militares estavam no poder havia cinco anos, com um golpe bem-sucedido que escondia a cara carrancuda do regime. A face cruel só viria mesmo após o AI-5 ter sido promulgado pelo general Costa e Silva, em dezembro do ano anterior - meses antes do ataque perpetrado pelo CCC ao Monumento ao Trabalhador.
O Brasil e Goiânia, portanto, estavam sob clima tenso. Se os fardados empunhavam fuzis para reprimir qualquer pensamento contrário à ditadura, os extremistas à direita simpáticos ao CCC fizeram do piche fervido uma arma letal. Era um poder tão aniquilador que destruiu os painéis que evidenciaram, no lado direito, o mundo do trabalho, aquele da exploração do homem pelo homem, e no lado esquerdo, a luta proletária, dos trabalhadores.
Com ampla pesquisa fotográfica e até charge desenhada pelo jornalista Helvécio Cardoso, por anos presença garantida nas páginas deste Diário da Manhã às segundas-feiras, sob o pseudônimo Joaquim Decker, Pedro Célio narra a “inação” daqueles que governavam a cidade, como o então prefeito, Iris Rezende, e a secretária de cultura, Maria Guilhermina. “Sob o clima de recrudescimento da repressão, nenhuma providência foi tomada”, conta.
As pastilhas rapidamente se descolaram das duas bases de concreto, estabelecendo uma analogia sincronizada entre a progressiva dissolução das imagens e o posterior apagamento da memória sobre sua existência e os seus significadosPedro Célio, cientista político
“As pastilhas rapidamente se descolaram das duas bases de concreto, estabelecendo uma analogia sincronizada entre a progressiva dissolução das imagens e o posterior apagamento da memória sobre sua existência e os seus significados”, prossegue Pedro. Cassado pela ditadura, ao final de 1969, Iris foi sucedido por prefeitos que, por princípio ideológico, “fizeram ouvidos moucos” para a esperada recuperação do monumento destruído.
Descaso
Em três ocasiões, lista o pesquisador, os governantes insistiram com o “truculento trabalho” do CCC. “O prefeito Manoel dos Reis ordenou, em 1973, a raspagem das pastilhas deterioradas, sem nenhuma proposta de reconstituição. Essa atitude atendia mais às declaradas convicções anticomunistas do prefeito do que a suas incumbências de administrador público”, contextualiza. Quando se debatia a Constituição Cidadã, entre 86 e 87, as armações de concreto que sustentavam os painéis eram atiradas ao chão.
Foi um projeto arquitetônico assinado pelo vilaboense Elder Rocha Lima, que imprimiu sua marca na paisagem urbana goianiense a partir de prédios como Biblioteca Central da PUC e Escola de Engenharia da UFG, ambos localizados no Leste Universitário. Já o paulista Clóvis Graciano, artista renomado nas artes plásticas brasileiras do século 20, criou os dois painéis, que mediam cada um 1,5 metro de altura por 13,6 metros de comprimento.
Obras “Mundo do Trabalho” e “Luta dos Trabalhadores” aludiam aos trabalhadores de Chicago. Marcus Vinícius BeckAdornadas por pastilhas vitrificadas, as obras “Mundo do Trabalho” e “Luta dos Trabalhadores” aludiam aos trabalhadores de Chicago no episódio que ficara conhecido como Revolta Haymarket, evento ocorrido no século 19. “A alegação para demolir as colunas de concreto prendeu-se à falaciosa necessidade de um projeto para estender a Avenida Goiás rumo ao norte da cidade, passando por baixo da Estação Ferroviária”, lembra Pedro.
Décadas depois, na virada para este milênio, houve mobilização para brigar pela restauração do monumento. Conhecido pelo rigor com que trata o tema, Pedro Célio foi um dos incentivadores. Em 2003, durante a gestão do ex-prefeito Pedro Wilson, constituiu-se um grupo de trabalho para avaliar a reconstrução do monumento. Mesmo com um relatório bem detalhado e contendo até o valor que seria gasto, veio a eleição do prefeito Iris Rezende.
Iris, como se sabe, estava em seu primeiro mandato de prefeito quando o Monumento ao Trabalhador fora pichado pelo CCC, em 1969. “1969 - 2018: Um Crime Contra a Cultura e a Memória” detalha também a tese da reconstrução, dissecando a Lei Orgânica de Goiânia, sancionada em 1990, em cujo texto se diz que “o Poder Executivo fica autorizado a adotar todos os procedimentos necessários à reconstrução do Painel/Monumento”.
Fonte: https://www.dm.com.br/
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